Historicamente, o sistema carcerário brasileiro foi baseado em práticas punitivas que pouco consideravam a reabilitação. Desde o período colonial, as prisões eram vistas como locais de exclusão, sem preocupação com a dignidade dos detentos.
Episódios como o massacre do Carandiru, em 1992, expuseram ao mundo a falência do sistema prisional brasileiro.
A obra Diário de um detento do grupo Racionais MC’s resgatou esse marco histórico para expor à sociedade as disfunções que afligem as prisões do Brasil, denunciando no verso “um presídio lotado, o sistema falido, mulheres sofrendo, seus filhos perdidos” a superlotação das celas como fator agravante das condições físicas e mentais na vida dos presos.
As péssimas condições sanitárias dentro das penitenciárias, aliadas à superlotação, contribuíram para a disseminação de doenças como tuberculose e HIV.
O médico Drauzio Varella, no livro Estação Carandiru (Companhia das Letras – Clique para comprar), descreveu essa realidade, ressaltando que a falta de atendimento adequado transformava os presídios em ambientes propícios à propagação de enfermidades:
“No pavilhão oito, quase metade dos presos tossia o tempo inteiro. Os que tinham febre se misturavam aos que estavam saudáveis, e a única barreira contra a transmissão era a sorte.”
Ele ainda destacou em um trecho de seu livro: “na cadeia, a saúde é um luxo”, apontando o histórico de um modelo frágil de saúde nas prisões brasileiras.
O SUS e o sistema prisional
Isso mudou um pouco com a instalação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade (PNAISP), mas ainda há muito por fazer.
A população mundial encarcerada gira em torno de 10,77 milhões de pessoas, e o Brasil tem um total de 888 mil pessoas aprisionadas, sendo o 3º país com maior população privada de liberdade do mundo, perdendo apenas para Estados Unidos e China.
A sociedade brasileira apresenta como regimento máximo a Constituição Federal (CF), que zela pelos direitos de cada indivíduo. Mesmo com a perda do direito de ir e vir da população privada de liberdade, esta população tem seu direito à saúde assegurado pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Nesse contexto, a PNAISP, criada em 2014, surge como uma tentativa de incluir essa população na rede pública, garantindo o acesso a serviços essenciais. Diversos fatores dificultam a efetivação dessa política, mantendo a realidade prisional brasileira distante do ideal. As doenças infectocontagiosas ainda são as que mais acometem as pessoas privadas de liberdade.
Mesmo assim, segundo a Secretaria Nacional de Políticas Penais, o SUS realizou em 2021 um total de 5.926.659 atendimentos, entre vacinas, exames/testagens, curativos, entre outros procedimentos.
Assim, a proposta da política se cumpre garantindo equipes de atenção primária e assistência médica básica nas penitenciárias, mas a falta de infraestrutura e de profissionais de saúde ainda inviabiliza a implementação plena do programa.
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Saúde mental das pessoas privadas de liberdade
Além do descaso com serviços médicos básicos, as dificuldades no atendimento em saúde mental agravam os problemas, tornando a ressocialização ainda mais difícil.
Pesquisas apontam que detentos no Brasil apresentam sintomas de transtornos psicológicos, com a depressão e a ansiedade entre os mais comuns.
Experiências locais de terapia comunitária integrativa e ações voltadas para a prevenção do tabagismo mostraram alívio no sofrimento dos reclusos e impacto positivo também na saúde mental de seus familiares. Além disso, tais iniciativas contribuíram para a redução da criminalidade em regiões próximas.
Estudos indicam que a maioria da população carcerária é formada por negros, pobres da periferia e usuários de drogas, evidenciando a relação entre desigualdade social e encarceramento. Enquanto isso, outras classes sociais mais favorecidas acabam sendo beneficiadas por maior acesso à justiça.
Letramento cultural
Um aspecto importante nesse contexto é o letramento cultural. A cultura hip-hop tem sido uma das principais formas de denúncia dessa realidade.
Letras de rap, como Fórmula Mágica da Paz, dos Racionais MC’s, retratam a marginalização dos presos e a negligência do Estado em relação à saúde dentro dos presídios. A música expressa como a superlotação e a falta de assistência médica tornam as penitenciárias ambientes desumanos.
Assim, fica evidente que o sistema carcerário brasileiro enfrenta grandes consequências das desigualdades sociais, comprometendo não apenas o bem-estar físico, mas também o social e o psicológico desta população.
Garantir o direito à saúde para aqueles que estão privados de liberdade é essencial para um sistema carcerário mais justo e eficiente, que promova a equidade e respeite os direitos humanos.
Investir em recursos, infraestrutura, capacitação profissional e uma abordagem humanizada nas instituições prisionais é fundamental. O acesso à saúde é um direito do detento, independentemente de seu delito.
O fortalecimento de políticas públicas, a ampliação dos serviços de saúde mental e o desenvolvimento de programas eficazes de ressocialização são passos essenciais para reduzir os impactos do encarceramento. Além disso, oferecer suporte psicológico é uma estratégia para construir um sistema de justiça mais humano.
Esses cuidados são essenciais não apenas para a recuperação do bem-estar do preso, mas também para sua reintegração à sociedade. O Estado tem a responsabilidade de assegurar a integridade dessa população enquanto sob sua tutela.
*Texto construído pelas enfermeiras Jussara Otaviano e Fernanda Abdala, e pelos estudantes de medicina do Centro Universitário São Camilo: Artur de Camargo Amaroli Grander, Brenda Marcely Rezende, Isabela Françoso Babichak, João Pedro Nakano Fonseca e Silva, Nilson de Mello Paim Cordeiro Piedade, Isabela Benedik, Isabelle Dorea, Sofia Catellani, Rebecca Medeiros, Natália Fontes, Letícia Simões, Bruna Pedrosa Gasparetto, Fabio D’Uvo Gomes da Silva, Laura Rafaella de Souza Marques, Maria Cecília Francischini, Maria Luiza Valerio Fachone, Caique, Yuri Ribeiro, Leticia de Paula, Wesley Franco, Betina Tobo. Depoimentos extraídos da Terapeuta Comunitária Adriana Carvalho dos Santos e Terapeutas comunitários da equipe de Atenção Primária de Saúde da cidade de Guaxupé (MG); Enfermeira Vanessa Bueno, Agente Comunitária Julia Maria de Oliveira, técnica de enfermagem Andrea Fernanda da Silva de Paula, Médicos de Família Nilo Sergio Vieira Costa, Sergio Luis Assis Ferreira e Renata Celani, Coordenadora da Atenção Básica.
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