Receber um diagnóstico é, muitas vezes, encontrrar um certo alívio. Este não é um relato incomum.
Encontrar uma explicação para dificuldades que enfrentamos no dia a dia, poder nomear a origem de um sofrimento e tomar ações a fim de mitigar os efeitos dos transtornos mentais em nossa vida é sempre importante, e os diagnósticos psicológicos ou psiquiátricos podem fazer parte desse importante processo.
Mas também existem riscos no abuso dos diagnósticos, principalmente se envolverem os chamados transtornos mentais comuns. Ao abordar os temas da nossa subjetividade, a tentação da explicação que um diagnóstico aparenta fornecer não pode matar a nossa capacidade de nos fazermos perguntas.
Um diagnóstico explica muita coisa, mas não define ninguém! Ele não pode servir de anteparo que impeça o olhar do sujeito sobre si mesmo. O risco de que o diagnóstico se transforme em rótulo não significa pouca coisa quando se tem em mente que esse rótulo pode impactar profundamente o destino de uma pessoa, influenciando tanto como ela olha para si e para o mundo, quanto como o mundo olha para ela.
Todos nós somos mais do que uma mera hipótese diagnóstica. Essa é a aposta que qualquer psicoterapeuta mantém mesmo diante de pacientes que declaram, com base em suas experiências ou até em suas próprias pesquisas no Google para fazer um autodiagnóstico.
+Leia também: Diagnóstico em saúde mental: prisão ou libertação?
O aumento dos diagnósticos ao longo do tempo
Estamos mais propensos aos diagnósticos nos dias de hoje. O número de categorias diagnósticas do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) (uma das referências internacionais que organiza e orienta as categorias de diagnósticos em saúde mental) triplicou desde a sua primeira edição.
O DSM-I, lançado em 1952, apresentava apenas 102 categorias, enquanto a última revisão, o DSM-5, datada de 2022, contém mais de 300 diagnósticos.
No bojo dessa discussão, circulou nas últimas semanas a notícia de que o Governo Federal está investindo 12 milhões de reais no “e-Saúde Mental no SUS”, uma “plataforma tecnológica integrada, que usa inteligência artificial, para o diagnóstico e tratamento de transtornos mentais na Atenção Primária”.
Uma máquina de diagnósticos, uma inovação tecnológica ou uma nova forma de fazer velhas coisas? O Conselho Federal de Psicologia emitiu um posicionamento destacando riscos da iniciativa.
A polêmica máquina de diagnósticos
Neste contexto, a mera proposta de criar uma máquina de dar diagnósticos preocupa, ainda mais quando posta ao alcance das nossas mãos, através de um mero smartphone. Há que se debater mais sobre o programa, ainda pouco divulgado.
Cabe a pergunta, por exemplo, sobre as implicações legais de tal sistema: o INSS, as empresas e os patrões aceitarão o diagnóstico feito pela IA para conceder algum benefício aos trabalhadores?
Será que um dispositivo programado justamente para diagnosticar será capaz de não dar um diagnóstico quando não for o caso? Essas e outras perguntas que contêm muitas implicações ainda não foram respondidas.
+Leia também: Psicoterapia na era digital
Com todo o benefício da dúvida que se possa prestar ao caso da máquina de diagnósticos do governo, ainda resta perguntar se o dispositivo conseguirá escapar de uma visão reducionista da saúde mental, superando as tendências medicalizantes e observando o contexto de vida dos pacientes.
Isso, sem contar a falta da perspectiva humana dessa futura IA de “diagnóstico e tratamento”: aquela que observa o comportamento do paciente, o olhar, os gestos, a aparência e considera sua história e seu contexto social entre tantos outros signos que ajudam a compor um diagnóstico.
Que tipo de tratamento seria oferecido por um dispositivo que não sonha, não sente, não se emociona, e pior, nunca fez terapia? Com a lucidez dos poetas, escreveu Gilberto Gil: o cérebro eletrônico faz tudo. Faz QUASE tudo.
Compartilhe essa matéria via: