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No fim da vida, comer com prazer importa mais do que nutrir



É difícil entender que para um parente ou amigo, portador de doença incurável e que não responde a tratamentos, uma dieta pensada para satisfazer as necessidades nutricionais, como indicado a outros pacientes, pode ser dispensável.

É intuitivo acreditar que, ao deixarmos de fornecer nutrientes, estamos provocando uma morte por inanição, esquecendo que, na verdade, é a patologia de base que faz aquela vida chegar ao fim.

No ranking das doenças incuráveis e que necessitam de cuidados paliativos várias são cardiovasculares. Entre elas, a insuficiência cardíaca, caracterizada por sintomas como dispneia, fadiga, dor e depressão. Em fase avançada, quando medicamentos não conseguem mais conter sua evolução, os acometidos se tornam cada vez mais frágeis e dependentes de cuidados de forma progressiva.

Ao se aproximarem da morte, as pessoas requerem dedicação de equipes de saúde especializadas, que tenham um olhar voltado à qualidade de vida e não focando a doença, que não pode ser controlada. A intenção, neste estágio, é confortar, amenizar dores e oferecer suporte psicológico e espiritual.

Forçar alguém a comer, alegando que consumir nutrientes é importante tende a causar mais angústia do que bem-estar.

+Leia também: Cuidados paliativos: sem mitos e sem tabus

O objetivo da alimentação nos cuidados finais é transformar a refeição em uma situação agradável, com cardápio personalizado, com alimentos que façam sentido ao paladar, história e hábitos do paciente. A escolha é feita por ele ou por parentes e amigos que conheçam suas preferências.

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Não há rigidez de horário para comer ou se hidratar e nem quantidades mínimas ou máximas de ingestão. Nas “dietas de conforto”, a vontade do principal interessado é que dita as regras.

O momento da refeição deve, portanto, trazer significado ao paciente: pratos pelos quais ele tenha afeição, um quitute que alguém próximo prepare com carinho ou mesmo deixar que um ente querido oferte a dieta, reforçando a importância do vínculo afetivo.

Dieta zero ou quase zero

Muitos daqueles com doenças graves, quando não conseguem mais deglutir adequadamente, recebem fórmulas nutricionais via sonda (tubo plástico inserido pelo nariz até o estômago ou intestino).

Já se o sistema digestivo não está funcionando de forma apropriada e não há como digerir e absorver as propriedades necessárias, a alimentação parenteral (solução líquida aplicada diretamente na corrente sanguínea) pode ser uma alternativa.

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A única função das dietas por sonda ou parenterais é nutrir o corpo. Porém, na fase final, isso não irá prolongar a vida, curar, controlar, fazer regredir a doença ou manter o paciente mais forte. Sondas nasais e cateteres para infusão chegam a trazer desconfortos e até infecções. E essas dietas não trazem alento, prazer ou alívio.

Com a proximidade do fim, o organismo altera seu funcionamento, se adaptando à nova condição. É a preparação para um momento que exige menos atividade das funções orgânicas, sendo comum a intolerância do trato gastrointestinal.

Sintomas comuns ao final de vida, como vômitos, distensão abdominal, constipação ou diarreia, podem ser intensificados ao se impor grande quantidade de dieta. Vale lembrar que, para os pacientes com doença cardíaca, o volume de líquido impacta diretamente na sobrecarga ao coração. Ocorre prejuízo da capacidade respiratória, ocasionando falta de ar e inchaço dos membros.

A avaliação da equipe multiprofissional deve sempre considerar a relação custo-benefício: a nutrição recebida está promovendo qualidade de vida/sobrevida ou sofrimento? Porque, muitas vezes, o que parece ter lógica, do ponto de vista familiar, não é uma regra.

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Quando pensamos no bem-estar do enfermo, nem sempre iniciar uma dieta enteral, quando ele perde a possibilidade de se alimentar por via oral, é o melhor caminho. Assim como as dietas enteral ou parenteral podem ser suspensas ao se notar que o ônus para o paciente é maior do que o bônus.

Da mesma forma, a imposição de uma dieta padrão, quando a pessoa já não consegue ou não quer se alimentar, é um procedimento a ser reconsiderado.

Apesar da suspensão da dieta convencional parecer prejudicial, em pacientes no final de vida o cérebro é capaz de utilizar corpos cetônicos –produzidos pelo fígado a partir da quebra de gordura armazenada, processo conhecido como cetonemia – o que proporciona alívio de dores devido à liberação de substâncias endógenas opioides-like (encefalinas e endorfinas produzidas principalmente no cérebro), que também suprimem a sensação de fome.

Dessa forma, profissionais de cuidados paliativos, embasados em evidências científicas e devidamente treinados, desde que em concordância com o paciente e/ou com sua família, podem optar assertivamente por mantê-lo somente com alimentos que tragam prazer e conforto, não apenas gustativo, mas, sobretudo, emocional.

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* Daniel Dei Santi é cardiologista e coordenador do Grupo de Estudos de Cuidados Paliativos da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp). Luciene de Oliveira é nutricionista e integrante do Departamento de Nutrição da Socesp.

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