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Câncer de pulmão: a metamorfose de uma doença



Há um paradoxo no ar. Mesmo com a queda no número de fumantes no país, a taxa de diagnósticos de câncer de pulmão continua em alta — e, nos últimos anos, ele tem surgido inclusive em pessoas jovens que nunca tragaram um cigarro na vida. O que explica essa aparente contradição?

A ciência busca respostas, mas parte delas já está sendo esboçada. Para começar, não há só um câncer de pulmão. Existem doenças reunidas sob esse guarda-chuva. São tipos distintos, com comportamentos diferentes e reações diversas ao arsenal terapêutico.

Essa nova visão do problema, fruto do conhecimento em biologia molecular, ajuda a esclarecer por que a condição não ataca apenas homens com mais de 50 anos e décadas de tabagismo — o paciente que antes monopolizava o consultório dos oncologistas. E também baliza toda uma gama de novos tratamentos mais precisos contra um mal que ainda carrega a fama de ser o mais letal dos tumores.

+ Leia também: Por que os casos de câncer em jovens não param de crescer?

A crescente importância da genética

O entendimento do câncer como uma doença múltipla é indissociável dos avanços na investigação do DNA — o das células sadias e o das tumorais.

Embora o tabagismo continue representando o principal fator de risco para a enfermidade, e essa ameaça tenha sido reacesa com a popularização dos cigarros eletrônicos, um dos principais alvos dos estudos na área são as alterações genéticas envolvidas nos tumores pulmonares (assim mesmo, no plural).

Essa tendência ficou clara no último Congresso Europeu de Câncer de Pulmão (ELCC), realizado em Paris. Centenas de especialistas se reuniram na capital francesa para debater respostas sobre os mistérios que cercam o problema, as inovações nas terapias e o que pode ser feito para melhorar a vida dos pacientes.

EGFR, HER2 e KRAS G12C… Esses códigos estranhos, que mesclam letras e números, indicam mutações em genes que têm sido cada vez mais flagradas em exames pelos especialistas — justamente entre pessoas mais novas sem histórico de tabagismo.

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“Nem todo câncer de pulmão nasce igual”, afirma o oncologista Oren Smaletz, do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. “Há um percentual de casos com uma alteração genética evidente, e isso é especialmente presente em pacientes jovens que nunca fumaram, mulheres e pessoas de origem asiática”, explica o especialista.

Na maioria das vezes, essas mutações não são herdadas. Manifestam-se com o passar do tempo, e a pergunta de 1 bilhão de dólares é o que estaria induzindo a transformação maligna ainda no DNA das células. Poluição, estilo de vida, infecções respiratórias… Não faltam teorias a respeito.

Dados sobre o câncer de pulmão

  • 18 mil casos novos são registrados entre homens brasileiros anualmente
  • 14,5 mil mulheres no país recebem o diagnóstico todo ano. É o 4º tumor mais comum entre elas
  • 75% dos diagnósticos são feitos em estágio avançado, mais difícil de tratar
  • 25% foi quanto a mortalidade pôde ser reduzida com uma nova combinação de remédios
O efeito da poluição

Uma das hipóteses para o aumento de casos de câncer de pulmão, especialmente entre adultos jovens que não fumam, reside nas substâncias tóxicas inaladas pelo ar. “A exposição a poluentes, como o material particulado, está associada a um maior risco de desenvolver a doença”, diz o oncologista Carlos Gil, diretor médico da Oncoclínicas. Reduzir as emissões é, assim, questão de saúde pública.

 

 

Diagnóstico precoce ainda é desafio

A jornada do diagnóstico de um câncer de pulmão passa hoje por um duplo desafio. O primeiro: detectar a doença mais cedo. Estima-se que entre sete e oito casos no país sejam diagnosticados em estágio avançado, o que limita as opções terapêuticas e as chances de remissão.

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Uma maior conscientização sobre os sintomas (tosse persistente e falta de ar, por exemplo) e fatores de risco, bem como a ampliação do acesso a exames e especialistas, auxiliaria a reverter o cenário, que contribui para a alta letalidade do quadro.

O segundo desafio: delinear o melhor plano de ação para conter uma doença que pode aparecer inclusive em idade produtiva. Pelo menos nesse aspecto a medicina tem evoluído a passos largos. A compreensão e a identificação das mutações genéticas têm exercido um papel cada vez mais crucial no desenvolvimento e na escolha de tratamentos eficazes.

Avanços terapêuticos estão mudando a história do câncer de pulmão

Essa noção de que nem todo tumor é idêntico — e até o mesmo tipo tem comportamentos variados conforme o paciente — tem tudo a ver com os objetivos da chamada oncologia de precisão.

“Antes, a gente dividia o câncer de pulmão em três tipos principais. Agora, sabendo da mutação, podemos dar o nome e o sobrenome ao tumor”, diz o patologista Clóvis Klock, vice-coordenador da Comissão de Patologia da Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica (SBCO). “Hoje, essas alterações genéticas inclusive determinam o tratamento, pois há uma terapia-alvo para cada uma delas”, prossegue o médico. “É um grande exemplo de terapia personalizada.”

+Leia também: Novas fronteiras no cerco ao câncer

Nessa direção, o principal destaque do congresso europeu foi a combinação de tratamentos que demonstrou potencial de aumentar a sobrevida em ao menos 12 meses e reduzir a mortalidade precoce em 25% dos pacientes com câncer de pulmão de não pequenas células com mutação do gene EGFR — viu como a doença tem nome e sobrenome?

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Com a aliança entre o amivantamabe, um anticorpo, e o lazertinibe, que inibe uma proteína para impedir a proliferação de células tumorais, 56% dos pacientes em estudo que usaram a dupla terapia estavam vivos após três anos e meio de acompanhamento, em comparação aos 44% do grupo tratado com o esquema-padrão, o remédio osimertinibe.

O resultado foi considerado animador porque essa espécie de tumor, a mais comum, corresponde a 80 a 85% dos episódios da doença mundo afora. Calcula-se que metade dos pacientes com metástase — quando o câncer se espalhou por outros órgãos — tenha alguma mutação importante, sendo que a do gene EGFR está presente em até 20% dos casos.

“Os tratamentos da medicina de precisão nem sempre obtêm a cura, mas certamente oferecem melhor resposta e controle”, celebra Smaletz.

As melhores abordagem contra um tumor mais raro

Outro estudo que ganhou holofote, este brasileiro, teve como foco mapear o melhor tratamento para um tipo mais raro desse tumor: o que apresenta a fusão do gene ALK, tipo de alteração encontrada em 5 a 8% dos pacientes.

A análise das medicações empregadas buscou identificar aquela que oferecia mais tempo de vida, considerando que esse tipo da doença costuma aparecer em jovens não fumantes. No experimento, foram comparados os medicamentos alectinibe, brigatinibe e lorlatinibe — drogas que inibem especificamente a proteína produzida pelo gene ALK — em mais de 1 100 pessoas tratadas globalmente.

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“Os melhores desfechos no longo prazo foram para o alectinibe e o lorlatinibe, o que está alinhado com a prática clínica e ensaios anteriores. Fizemos um estudo de vida real que ajudará os oncologistas na definição do tratamento diante das opções disponíveis no Brasil”, diz o oncologista Carlos Teixeira, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo, que supervisionou o trabalho e esteve no encontro em Paris.

Problemas de acesso

As descobertas e as terapias inovadoras enchem profissionais e pacientes de esperança contra os cânceres de pulmão, mas ainda existem gargalos que atrapalham o diagnóstico correto e o tratamento adequado. O maior deles é o acesso.

Por mais que os laboratórios já estejam trabalhando nisso, testes genéticos e moleculares nem sempre estão à mão em todo o país — o Brasil dispõe de centros de referência em alguns estados e vazios assistenciais em outros.

Além disso, os novos tratamentos tendem a chegar ao mercado com preços elevados e demoram a ser incorporados ao rol de cobertura dos convênios e ao Sistema Único de Saúde (SUS). Assim, medicamentos que já são indicados para grupos populacionais menores, caso das pessoas com câncer de pulmão que têm determinadas mutações, entram em um funil mais apertado que desafia a busca pela equidade dos cuidados.

“Ainda temos uma lacuna entre o que é feito no sistema privado e o que conseguimos fazer no público. A maior dificuldade é como disponibilizar as terapias inovadoras no SUS”, avalia Smaletz.

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O desafio também abrange a prevenção. Oito em cada dez mortes por câncer de pulmão por aqui têm ligação com o cigarro, segundo um estudo recente da Fundação do Câncer. Ainda que o percentual de fumantes tenha caído após as campanhas e leis antitabagismo, cerca de 12% dos brasileiros ainda fumam.

E paira no ar a preocupação de que, com a disseminação dos vapes e a incessante poluição atmosférica, entremos num caminho de retrocesso, com novos e imprevisíveis danos aos pulmões. Sim, doenças passam por metamorfoses… Felizmente, o conhecimento e as ferramentas da medicina também.

Cigarro eletrônico também pode causar câncer

Já há uma somatória de evidências de que vapes e afins também lesam os pulmões, assim como podem viciar. Uma pesquisa sul-coreana, com dados de 4 milhões de pessoas, concluiu que indivíduos que pararam de fumar cigarros convencionais e passaram a adotar o eletrônico apresentavam maior risco de ter câncer de pulmão.

Indício de que a troca não passa batido pelo corpo.

7 fatores de risco para o câncer de pulmão

Os novos e velhos inimigos:

Influência genética: o histórico familiar da doença e o surgimento de mutações no DNA específicas ao longo da vida aumentam a propensão ao quadro.

Tabagismo: ainda é o principal fator de risco para o câncer de pulmão: estima-se que 80% das mortes no Brasil tenham a ver com o cigarro.

Exposição ocupacional: trabalhar em indústrias que manipulam amianto, arsênico e cádmio, por exemplo, eleva as chances do perigo.

Poluição do ar: desponta como um fator emergente, inclusive associado a tumores de pulmão sem ligação com anos de tabagismo.

Envelhecimento: como em outros tipos de câncer, o avançar da idade predispõe transformações malignas nas células — inclusive as pulmonares.

Doença crônica: quadros de doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), em geral desencadeados pelo cigarro, também aumentam o risco.

Infecções repetidas: pessoas que sofrem com pneumonias de repetição teriam uma maior probabilidade de desenvolver um câncer com a idade.

*A repórter viajou para o Congresso Europeu de Câncer de Pulmão a convite da Johnson & Johnson Innovative Medicine no Brasil.

 

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