
Que pós-graduação e experiência clínica que nada! Nunca foi tão fácil virar um especialista em emoções. Basta comprar um ring light para gravar lives nas redes sociais, treinar a retórica e contratar uma equipe de marketing. Não é exagero: se tem um campo em que o achismo, o afã por seguidores e lucro e a falta de seriedade ganharam terreno na internet, esse é o da saúde mental.
Uma ironia se pensarmos que, nas últimas décadas, a psicologia e a psiquiatria caminharam na direção oposta ao improviso: deixaram de depender apenas de interpretações livres e passaram a se consolidar como áreas cada vez mais amparadas em estudos.
Muito além das tecnologias, intuição e sensibilidade continuam centrais na psicoterapia, mas hoje ela pode ser testada, comparada e replicada dentro de pesquisas confiáveis.
É o modelo baseado em evidência, que já nos mostrou, por meio de exames de neuroimagem, que a terapia cognitivo-comportamental de fato modula o cérebro de pacientes deprimidos ou ansiosos, para citar apenas um exemplo.
Há, portanto, um contraste gritante entre esse mundo regido por critérios, protocolos e ética e aquele das descobertas, truques e métodos “revolucionários” propagados pelas mídias sociais.
Multiplicam-se “terapias generativas”, “métodos quânticos de cura emocional”, “reprogramações familiares”, “psicogenealogia”, “coaches de vida”, entre outros termos, que prometem transformações radicais em poucas sessões e dispensam qualquer compromisso com formação sólida ou com o rigor conceitual — embora adorem pinçar jargões científicos e citar artigos de procedência duvidosa. Abundam psicanalistas de cursos de dois semestres.
Hipnoterapeutas juram acabar com gastrites nervosas. Terapeutas energéticos — seja lá qual for a “energia” — prometem a paz de espírito. Enquanto consteladores familiares anunciam a resolução dos seus problemas, mesmo que o Conselho Federal de Psicologia classifique a prática como antiética e passível de causar danos.
Não é preciso fazer uma pesquisa aprofundada para deparar com “terapeutas” com centenas de milhares, às vezes milhões de seguidores. Um deles, dono de um canal no YouTube com 1 milhão de fãs, criou um instituto que forma “terapeutas emocionais” sem exigir diploma em psicologia ou qualquer outra área da saúde.
Ele ensinaria seus discípulos a tratar de pânico a fibromialgia, passando por narcisismo e medo do escuro. E o faz com um método próprio, capaz de reprogramar a mente, com resultados rápidos. Detalhe: o tal método nunca passou pelo crivo de um estudo.
Outra influenciadora, que se apresenta como psicanalista, é graduada em direito e construiu um império digital com mais de 1 milhão de seguidores. Hoje ela vende uma técnica “sistêmica” e “cientificamente validada” — ainda que não exista registro de estudo — voltada a curar as dores e os traumas do público feminino. Provavelmente está rica.
Como é que tanto picareta vende ilusões nas redes? Parte do problema é estrutural. No Brasil, a prática da psicoterapia nunca foi regulamentada como um ato privativo do psicólogo e do psiquiatra, mesmo após décadas de debate.
O resultado é um campo vulnerável: qualquer pessoa pode, em tese, se autodeclarar terapeuta e oferecer atendimentos — o que nas redes sociais acabou ganhando proporções inéditas. A outra parte do problema está no fato de que a saúde mental virou um objeto de desejo — e negócio.
O pacote típico do autointitulado especialista inclui uma narrativa de superação pessoal, citações pretensamente científicas e o discurso de que tudo de bom ou de ruim se resume a uma origem emocional.
Ele ostenta depoimentos de clientes felizes e oferece cursos pagos, não deixando de criticar as abordagens tradicionais, tachadas de lentas, antiquadas e ineficientes.
Mais grave ainda é o desprezo pela formação acadêmica. Em que pese a explosão de faculdades de medicina e psicologia pelo Brasil — e a discussão em torno da qualidade dos cursos —, o ponto é que psicólogos têm de estudar cinco anos, fazer estágio e se manter em constante atualização.
Psiquiatras cursam seis anos de medicina e fazem residência de pelo menos dois anos antes de atender pacientes. São formações longas, exigentes e que pressupõem, além de técnica, ética.
Ética, aqui, significa basear sua prática em evidências, não em palpites; em resultados testados, não em narrativas de iluminação pessoal; em tratamentos estruturados de acordo com cada demanda, não em um produto de prateleira. Só que a cobiça e a propaganda falam mais alto.
Para complicar, o acesso precário ao atendimento em saúde mental no país — considerado caro e restrito na rede pública — torna o cenário propício a que um número incontável de cidadãos caia nas armadilhas dos terapeutas de redes sociais.
E até é compreensível: quem, num momento de aperto ou sofrimento, não compraria um método de “cura rápida” a um só clique? A tristeza de uns, a alegria dos charlatões.
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Como se proteger
Para ninguém ser enganado por falsas promessas, convém compartilhar alguns sinais de alerta e recomendações. Primeiro: verifique a formação do psicoterapeuta e priorize profissionais com formação universitária na área. Segundo: dê uma olhada nas suas experiências e especializações.
Terceiro: procure saber se ele se envolve ou se envolveu com pesquisa, ensino ou supervisão — um perfil na plataforma Currículo Lattes oferece uma boa ideia disso. Quarto: observe e questione o discurso; quem atua com seriedade nunca fala em milagres e curas definitivas.
Quinto (uma regra antiga que continua valendo na era dos algoritmos): confie mais em quem trabalha com pessoas reais do que em quem trabalha com engajamento digital, ou seja, o encaminhamento de um profissional sério conta muito mais do que o volume de seguidores e curtidas nas redes. Influencers vêm e vão. Sua saúde mental não, ela não pode virar refém de posts e stories.
*Ilana Pinsky é psicóloga clínica e pesquisadora, doutora pela Unifesp, ex-consultora da Organização Mundial da Saúde (OMS) e colunista de VEJA.